Olá! Essa newsletter era para ter acontecido lá na pandemia e nunca aconteceu rs. Para manter uma rotina mais ou menos regrada de escrita, resolvi resgatar esse formato. Ou seja, a volta dos que nunca foram de verdade rs. Se você mudou de ideia e não quer nunca mais me ler, é só parar de assinar. Mas se você curtir, manda para sua pessoa favorita? Ou para quem você quer que seja um dia a sua pessoa favorita. Eu vou gostar muito.
Em 2022 eu fiquei obcecada com a Annie Ernaux. Ela tinha acabado de ganhar o Nobel, ia na FLIP, que coincidentemente também seria a minha primeira, tinha acabado de sair um filme sobre O Acontecimento, etc. Eu devorei o próprio na época do filme e também li O Jovem, que amei. Fiquei um tempo sem ler nada dela e ano passado eu fiquei obcecada com audiolivros e audioli A Vergonha, em inglês (pois é, eu tenho mania de ficar obcecada com as coisas, e audiolivro é um tópico para outra newsletter). Foi o primeiro livro dela que não mexeu tanto comigo, que não teve o impacto ou mesmo a potência dos dois anteriores (apesar da abertura de ficar cravada na memória: “Meu pai tentou matar minha mãe num domingo de junho, no começo da tarde”). Na época eu atribui à tradução para o inglês, uma língua mais distante do francês do que o português. Mas eu estava erradíssima e audioli Paixão Simples em inglês e talvez seja a melhor coisa de 2023.
Paixão Simples acompanha a narradora (que muita gente atribui a própria Annie mas aqui eu vou chamar de narradora) em um caso que ela tem com um homem casado. Enquanto ela relata essa relação, o que mais me chamou atenção foram os detalhes que consideramos vergonhosos: ela comprou uma roupa só para vê-lo, não tem vontade de atender ao telefone quando ele está viajando, não tem vontade de sair de casa porque ele pode ligar, não quer falar de nenhum assunto que não o envolva, etc. Aquele tipo de relação que um lado está dando migalhas de afeto e outro lado está se apegando nessas migalhas. Eu já tive uma paixão simples e suspeito que todo mundo já teve. Eu, você, Annie, a Taylor Swift.
Wanting was enough
For me, it was enough
To live for the hope of it all
Cancel plans just in case you'd call
Paixão é um sentimento que você só tem frente ao desconhecido. Estar apaixonada pressupõe um desconhecimento inerente de um período específico da “relação”. Você ainda está conhecendo a pessoa, ela ainda está te conhecendo. Para piorar, o homem do livro tem uma característica que costuma casar mal bem com um sentimento frente a um desconhecimento: a indisponibilidade. O homem do livro, de august e o meu ex-paixão simples… todos têm isso em comum. Que não necessariamente significa estar em um relacionamento, mas que costuma ser. O que resulta no comportamento dependente da narradora. Ela começa a não ver razão em nada que não o envolva. (Quem nunca?) E está sempre disponível, pronta, obediente para uma relação a qual ela não parece ter nenhuma felicidade. Todos esses sentimentos dizem muito mais sobre ela do que sobre ele (e a minha, a sua, a de todo mundo). É uma projeção em alguém do que ela acha que merece.
O que faz o livro tão poderoso é sua simplicidade (rs) em retratar esses sentimentos complexos, de carência perante a indisponibilidade e um apego ao desconhecido, e traduzi-lo em situações vergonhosas. Como demonstrar isso que não com a vontade de só ficar em casa esperando uma ligação? (De novo, quem nunca?) Não por acaso, as paixões simples soam como algo feminino e Annie Ernaux sabe disso.
A Academia Sueca entregou o Nobel para a autora por “coragem e acuidade clínica com a qual ela revela as raízes, os estranhamentos e as limitações da memória pessoal”. Nada me parece mais corajoso do que mostrar as ações vergonhosas (quase) inerentes da paixão.